Quase um mês após a audiência pública organizada pelo Ministério Público sobre as enchentes em Beltrão, o clima ainda é de incerteza e de ‘espera pelas eleições’. Enquanto famílias perdem o sono em noites de chuva, dezenas de empreendedores avançam sistematicamente na remodelação urbanística municipal, alimentando-se do oportunismo febril e do mais ingênuo conceito de evolução urbana que já se viu: o loteamento.
Para onde quer que se olhe em nossa cidade há uma montanha sendo removida. São caçambas e mais caçambas de terra sendo transportadas morro abaixo em nome do direito efêmero de empreender de imobiliárias, tratoristas, e demais interessados. A verdade (da qual se quer fugir) é que o processo acelerado e desordenado de urbanização está impermeabilizando grande parte da superfície da cidade, desrespeitando elementos naturais e geográficos de várzeas, rios e córregos!
Hoje em dia qualquer chuvisco, por mais remansoso que seja, faz inundar paços e ruas. E são inúmeros os pontos de risco que, quando inundados, desabrigam grande quantidade de cidadãos. Todos já sabem… Afinal de contas esses pontos já se transformaram em pontos turísticos. Em resumo: Beltrão hoje, em questão de planejamento, é uma São Paulo em miniatura.
A questão que se coloca é a seguinte: De quem é a culpa? Do Plano Diretor? Do Ministério Publico? Da Administração? Da cabeceira do Rio Marrecas? Ou dos Loteadores?
Para quem esteve na audiência pública organizada pelo Ministério Público de Beltrão sobre “Planejamento urbano” no dia 24 de julho, a impressão que se teve é a de que a ‘culpa’ não é das administrações e nem dos empreendedores imobiliários. Para os profissionais contratados ou convidados para apaziguar os nervos da população a grande falha e o principal responsável pela bancarrota urbana de Francisco Beltrão é o Plano Diretor. Mas é aí que grande parte dos envolvidos se enganam. Senão vejamos…
Taxado de desatualizado e antiquado, o atual Plano Diretor de Francisco Beltrão (Lei nº 3300/2006), foi aprovado pela câmara dos vereadores e sancionado em 06.11.2006 pelo então prefeito Vilmar Cordasso, com o objetivo de assegurar, dentre outros, o “direito à cidade para todos, compreendendo: o direito à terra urbana; à moradia digna; ao saneamento ambiental com a preservação e recuperação do ambiente natural; à infra-estrutura urbana; a mobilidade, a acessibilidade priorizando o transporte coletivo público; aos serviços públicos; ao trabalho e ao lazer” (Art 6º, inciso III).
Embora difícil de precisar, o conceito de “moradia digna” se mostra um desafio muito mais político do que jurídico. De todo modo, cabe ao executivo, através de medidas conscientes e afeitas ao princípio da precaução, garantir que todos tenham uma moradia segura. Neste ponto, o plano diretor beltronense é claro: A administração tem o dever de não conceder a permissão de construir em zonas de risco, de controlar locais ou imóveis insalubres, locais de difícil acesso aos bombeiros (saturnismo), imóveis sob ameaça de ruína, edifícios de estrutura prerigosa. Este controle depende dos poderes de polícia administrativos, maior investimento e comprometimento público.
Não se resumindo apenas ao direito habitacional, o diploma vituperado pelos experts presentes na audiência pública, ainda se compromete com a “garantia da qualidade do ambiente urbano, por meio da preservação dos recursos naturais (…) (Art. 7, IV) bem como a transferência para a coletividade de parte da valorização imobiliária inerente à urbanização” (Art. 7, V).
Se o diploma legal assim o determina, cabe a nós cidadãos, aos membros do executivo e do judiciário do município conformarmo-nos a essa realidade! Ora, de que servirá um diploma municipal regulando condutas ambientais e urbanas se não há envolvimento dos destinatários da norma? Assim, tanto a lei orgânica do município como o plano diretor restarão letra morta, sem qualquer aplicação, alvo fácil para críticas e censuras de profissionais vindos de outras cidades ou estados.
A elaboração de plano diretor não é mero compromisso de agenda eleitoral. Não se faz plano diretor a fim de remunerar engenheiros técnicos ou arquitetos a cada dois anos! O objetivo essencial e a razão teleológica pela qual se redige esta cédula é o de apontar os rumos para um desenvolvimento local economicamente viável, socialmente justo e ecologicamente equilibrado. Além disso, o que se espera é que esse dispositivo proponha diretrizes para proteger o meio ambiente, os mananciais, as áreas verdes e o patrimônio histórico local. E tudo isso, embora muitos não saibam, está previsto em nosso plano diretor.
Vejam que, ao prever “a transferência para a coletividade de parte da valorização imobiliária inerente à urbanização” (Art. 7, V), o plano diretor beltronense está impondo vistas grossas aos particulares e empreendedores imobiliários quanto ao Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) de competência tributária dos municípios, uma vez que o fato gerador é mais que evidente, qual seja, a propriedade localizada na zona urbana do município. Assim, esse imposto deve ser pago à exatidão pelos loteadores (sem isenção) e, posteriormente, vertido para a coletividade em forma de infraestrutura, saúde educação, transporte público, etc…
Nesse sentido é de ser censurada qualquer forma de favoritismo ou permissão indevida. Não há que se franquear empreendedores “bem intencionados” em detrimento do meio ambiente. Isso porque o imediatismo financeiro que acompanha o mercado imobiliário aparece como um dos maiores detratores do ambiente e do direito à moradia digna. Nesse sentido, cabe mencionar novamente o princípio da precaução ambiental, o qual deve ser atentamente aplicado pelas administrações públicas conforme artigo 15 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento: “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.
Em ultima análise, para compreender e conhecer o chão que se pisa, não há que se ir muito longe, bastando verificar a compatibilidade do plano diretor com a Lei Orgânica do município de Francisco Beltrão. Trabalho minucioso e objetivo que estabelece diretivas e princípios inclusive em matéria de meio ambiente e habitação. Assim, na presença de estatutos municipais de peso, concertados e coerentes, não deve ser criada a expectativa e nem a falsa necessidade de elaboração de uma nova norma. Isso porque, de nada vale uma lei sofisticada e padronizada nas mãos do aplicador retrógrado. Por isso, a melhor solução para o problema das enchentes – e a mais econômica – é fazer valer os diplomas em vigor, sob pena de, em não o fazendo, banalizar-se o valor das normas e mercantilizar o poder legislativo.
Desse modo, se os loteamentos urbanos estão dando causa ao agravamento das enchentes, cabe aos três poderes municipais observarem o disposto na Lei Orgânica quanto à preservação de áreas verdes (Art 4º, § 1º al. C), à obrigatoriedade da participação de representantes de grupos comunitários e associações de bairros, na fase de estudos e de elaboração de planos de arruamentos, loteamentos (Art 4º, § 2º), bem como a necessidade de consulta por referendo dos munícipes de que poderão ser atingidos gravemente pelo impacto ambiental, motivado por projetos (Art. 126).
Assim, à título elucidativo, vislumbra-se a aptidão do Plano Diretor Beltronense para a legitimação de políticas públicas de fiscalização, gestão e aplicação de recursos. Não havendo porque censurar ou diminuir a força legal deste estatuto. Antes disso, há que se aplicar com rigor e indistintamente os princípios e diretrizes que o compõem. Além disso, deve-se atentar ao fato de que a Política Ambiental no Município deve ser articulada com as diversas políticas públicas de gestão e proteção ambiental, de áreas verdes, de recursos hídricos, de saneamento básico, de drenagem urbana e de coleta e destinação de resíduos sólidos (Art. 67).
Por fim, um olhar atento sob o plano diretor da nossa cidade nos mostra que se trata de um diploma sério, completo e atual. O respeito ao meio ambiente ao princípio da eficiência são reiteradamente colocados em destaque (conforme pode se observar nos artigos 50, VII; 64; 69; 70), bem assim o rigor tributário e a necessidade de comprometimento da administração. Assim, para que centenas de nossos concidadãos possam dormir em tempos de chuva e tenham garantido o direito à moradia digna, é preciso que tanto a administração, como o Ministério público e os cidadãos estejam atentos aos princípios elencados no Plano Diretor, utilizando-os para todas as decisões e ações tomadas na gestão da cidade.
Francisco Beltrão, 20 de agosto de 2014.
Pedro Henrique Leite
OAB/PR-60.781